Uma estória é uma narrativa de ficção baseada em factos puramente imaginários.

quinta-feira, agosto 03, 2006

O que são as mulheres

"Estou farto de dizer aos meus amigos que a gente não entende as mulheres. São como os telefones: de vez em quando avariam-se sem que se perceba porquê. Deixam de funcionar. Não trabalham. Levanta-se o auscultador e um silêncio opaco. Então agarra-se no aparelho, bate-se com ele na mesa e começa de novo. Há momentos em que nem é preciso bater com ele na mesa: dá uns guinchos eléctricos e pronto. Se chamarmos o técnico o sujeito desmonta aquilo todo competente, não compreende o que se passa, tenta explicar
-Devem ser uns fios que colaram
a gente paga a explicação e fica na mesma e as mulheres sem problemas até à próxima mudez. No meu caso, quando isso acontece bato logo com ela na mesa. Até agora tem dado resultado. E é um aparelho com quarenta anos de serviço, perdão, trinta e nove, quarenta em Março. Uma maravilha ao princípio. Depois com os filhos (dois rapazes) começaram os caprichos, volta e meia lágrimas, amuos, a frase
-Já viste a minha vida?
(...)
-Só és terno comigo quando queres fazer amor
e um desejo idiota de mãozinahs dadas e flores. Se lhe compro um ramo de flores não me chateia durante uma semana. (...) Aguenta-as ali murchas que tempos, a sorrir-lhes. (...) Há uma porção de coisas que escondem da gente: um anelzinho de bolo-rei que não vale nada, um camafeu quebrado, uma fotografia do tempo de namoro em que lhe pomos o braço sobre o ombro: a lista do que as comove é interminável. E as parvoíces de que se lembram numa tremura de saudade. E a mania das datas: o dia em que nos conhecemos, o dia do primeiro beijo, lamechices assim, coisas sem importância alguma para elas vitais. Por exemplo (...) -Há quanto tempo não dançamos?
(...)
O que ultimamente se tem passado com a minha é que não há mesa que valha, não há guinchos, não pronto: o silêncio opaco eterniza-ze. Chego e lá está ela no sofá (no meu lugar do sofá) repimpada sem me dar atenção. Emagreceu. Tornou a ter cintura. Os tornozelos afilaram. Acabaram-se as bolachas à socapa, os chocolates. Não me cheira as camisas. Não verifica nódoas. Não olha para mim. Não me toca. A sua actividade resume-se a ir de vez em quando à varanda e de tempos a tempos acenar para fora. Tenho a impressão que alguém lhe acena de um automóvel estacionado em segunda fila na rua, e quando digo alguém lhe acena refiro-me a uma manga de homem (...). A semana passada esteve cá em casa a ajudá-la a fazer as malas(...). Não me cumprimentaram. Os meus filhos falavam com ele como se o conhecessem de ginjeira. (...) Pensei em chamar o técnico dos telefones e apercebi-me que não serviria de nada. Dizia-me
-Devem ter sido uns fios que colaram
e descia as escadas a rir-se de mim. Por conseguinte tranquei-me na sala, sozinho, até eles se irem embora. (...) Não abro a porta da sala por medo que me acertem numa vista: pode ser que venha a necessitar dos dois olhos para lhes comprar um ramo de flores decente, sem nenhuma rosa a estragar-se, no dia em que ela voltar. E, já agora, tenho usado o anel do bolo-rei no mindinho. Ao interessarem-se
-Onde arranjaste isso?
não digo nada. A minha mulher há-de gostar de ver-me assim ao entrarmos na discoteca."
António Lobo Antunes

Pensamento do dia

Em plena baixa do Porto pode ler-se: "O Capitalismo roubou-me a virgindade."

Mas é tão bom já não ser virgem...